segunda-feira, 29 de outubro de 2012

Artigo: O homem, este mistério

Cardeal Odilo Pedro Scherer
Arcebispo de São Paulo (SP)
No dia 11 de outubro passado, a Praça de São Pedro recordou um dos momentos memoráveis da história da Igreja Católica no século XX: a abertura do Concílio Ecumênico Vaticano II, ocorrida nesse mesmo dia de outubro, em 1962.

Um dos pontos salientes do Concílio foi a sua rica antropologia, que recolheu o pensamento cristão amadurecido durante séculos e que desejo retratar aqui, com breves acenos. Entre as primeiras perguntas da filosofia estão as que se referem ao próprio homem: quem, afinal, é o homem? Que sentido tem sua vida? Quanto vale cada ser humano em particular?

As guerras e as tragédias humanitárias da primeira metade do século XX haviam ferido e desfigurado profundamente a imagem do ser humano, que precisava ser restaurada. A Declaração Universal dos Direitos do Homem, da ONU, representou uma síntese do esforço comum feito pela comunidade política, para afirmar a dignidade e os direitos humanos; para ela contribuíram varias correntes do pensamento filosófico e religioso da humanidade, incluindo o pensamento católico.

O Concílio Vaticano II, porém, deu origem a uma verdadeira “virada antropológica” na reflexão teológica e filosófica católica e na própria vida prática da Igreja; e isso foi traduzido numa atenção muito especial para com o ser humano. Não é que a Igreja Católica, enquanto religião, tenha deixado de lado Deus, como referencial primeiro e último da religião: ao contrário, foi por causa de sua convicção sobre Deus, e por levar Deus plenamente a sério que a Igreja passou mais às conseqüências de sua fé no trato com o ser humano. O próprio ensinamento de Jesus já resumiu toda a Lei de Deus no duplo e inseparável amor – a Deus e ao próximo. E o apóstolo São João questionava com veemência quem já o havia esquecido: “irmãos, como pode alguém dizer que ama a Deus, a quem não vê, se não ama ao próximo que vê?”

A antropologia decorrente da fé cristã vem dos textos bíblicos, onde se aprende que Deus tem um olhar de predileção por todo ser humano; tendo-o criado “à sua imagem e semelhança”, confiou-lhe também parte na responsabilidade sobre o “jardim”, onde se encontra toda sorte de criaturas. O próprio homem, tomando consciência da distinção com que é tratado pelo Criador no meio das demais criaturas, cheio de estupor, numa noite de céu estrelado, exclama: “Senhor, como é grande o vosso nome em todo o universo! Que é o homem, para que dele vos lembreis? Um filho de homem, para que vos ocupeis com ele tanto assim?!” (cf. Sl 8).

A síntese da antropologia cristã foi expressa de maneira singular na Constituição Pastoral Gaudium et Spes (nº 22), do Concílio Vaticano II, e recebeu grande contribuição de filósofos, como Jacques Maritain e Edith Stein, e teólogos, como Henri Delubac e Hans Urs Von Balthasar; nela, foi trazida novamente à tona a sua fonte inspiradora e referência primeira, que e o mistério da “humanidade de Deus”, manifestado ao mundo em Jesus Cristo. Já perguntavam os teólogos antigos: por que o Filho de Deus se fez homem? E a resposta mais extraordinária é esta: por puro amor ao homem e para lhe mostrar quanto valor ele tem.

O papa João Paulo II gostava de repetir esta afirmação do Concílio: em Jesus Cristo, Deus revelou plenamente o homem ao próprio homem! A fé cristã, por isso, tem um conceito muito elevado do ser humano, base para a afirmação de sua dignidade e de seus direitos inalienáveis. Nada do que é autenticamente humano deixa de ter importância para a relação do homem com Deus; e os seus anseios de liberdade, paz, felicidade e realização plena devem ser levados plenamente a sério.

Cada ser humano é pessoa, é única e irrepetível. E cada pessoa è uma consciência, uma liberdade, uma individualidade, uma subjetividade. Nada mais contrário à visão cristã do ser humano do que a massificação despersonalizante, onde os seres humanos somam números em vez de rostos e são apenas representados em estatísticas. Nem corresponde à visão cristã do homem que sua força motivadora maior seja a inimizade contra o outro homem – “homo hominis lupo”. Cada ser humano tem uma história pessoal e uma contribuição a dar ao bem comum. O amor é, de fato, a força maior que une e harmoniza as relações humanas.

Algumas vertentes do pensamento moderno e contemporâneo têm Deus como o grande obstáculo à felicidade do homem que, por isso, deveria tirá-lo de seu caminho para ser feliz. Para a antropologia cristã, ao contrário, Deus é a condição de possibilidade para o sentido da existência humana; sem a referência a Deus, o homem permanece um enigma, fechado na estreiteza de seu próprio horizonte, nunca suficientemente largo e luminoso para justificar suas aspirações e buscas de felicidade.

O homem não é fruto de um acaso cego, mas deve sua origem a um querer amoroso de Deus; nem é prisioneiro de forças externas, que o enredam em tramas favoráveis ou adversas, das quais ele não se pode livrar. Ele é livre e capaz de viver com sentido e de alcançar a felicidade e a paz, quando acolhe o desígnio de Deus e colabora de maneira responsável na sua obra, quer na vida pessoal, quer na vida social e no cuidado do mundo. O homem é chamado a ser colaborador livre e responsável com Deus e aqui está o fundamento último da vida moral.

A vida do homem não se esgota neste mundo, feito ainda de realidades contingentes e precárias; ele próprio também está sujeito a essa precariedade, mas é chamado à vida em plenitude, junto de Deus. De fato, desde agora, o homem já é capaz de acolher a manifestação de Deus, conhecendo de alguma forma o seu ser, seu desígnio de amor e salvação e de sintonizar com ele. E aqui está o fundamento maior de sua dignidade.
 
Fonte: CNBB

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